quarta-feira, fevereiro 23, 2005

O livro que fez parar o tempo

O tempo parecia um pássaro voando livre e despreocupado. A vida tem destas coisas. Quando não damos pelo tempo ele permanece imperturbável, sem nos atribuir importância, pois para ele nós somos completamente indiferentes. O seu caminho continua o mesmo, numa viagem que não tem fim. Se nós nos esquecemos dele, ele continua a sua caminhada e nós ficamos, por vezes sós, por vezes velhos, por vezes prisioneiros. O tempo dizima-nos. Resolvi deitar-me e adormecer. Sabia que só uma destas acções era por mim controlada. Por muitas voltas que desse na cama, o sono era uma miragem. O meu corpo estava cansado e estranhamente leve. Apenas o suave brilho da Lua me distraía o pensamento, pois o corpo parecia não responder à gravidade. Sentia uma ausência total de matéria, mas o meu espírito enchera-se de uma energia invulgar, relegando para segundo plano um cansaço que deixara de o ser, mesmo por breves segundos. Naquele instante apercebi-me que o tempo já não contava, que a minha felicidade interior era mais forte que a sua caminhada imparável, que por mais que o tempo corresse não conseguia transportar-me com ele. Teria eu conseguido pará-lo ? Estaria eu a alhear-me mais uma vez do mundo ? Como não adormecia, peguei de novo no livro que serenamente repousava junto à cabeceira da minha cama. Apesar de não o ter marcado, rapidamente localizei a última página lida. É suposto as marcas servirem para tal, mas aquele livro as dispensara. Tinha começado a folheá-lo pouco tempo antes, no início da madrugada, e reparei que em poucos minutos estava a pouco mais de um terço do seu final. Por momentos desejei não o concluir. As imagens não paravam de rodopiar na minha mente, transformada num carrossel de uma festa repleta de crianças e homens de bom coração. Os homens de bom coração ofereciam gelados às crianças e as crianças prendavam os homens de bom coração com um sorriso infindável, que de tão puro e irradiante deixava os homens com vontade de voltarem a ser crianças, para poderem receber gelados de outros homens, necessariamente de bom coração. Tento não desviar a minha atenção das imagens. Aquela cabana junto ao mar aí permanecia. Também te amo Jacira. Senti na minha mão a forma cilíndrica da flauta do João «Castor», e também segurei umas quantas lágrimas que teimavam em pesar mais do que a minha própria vontade. Também eu vi os raios de luz que desciam da árvore...e calei-me. Haverá alguém que acredite em raios de luz emanados de árvores para além daqueles que os conseguem ver ? Mesmo nunca tendo feito surf, tive a certeza que me libertaria, e o mar receber-me-ia em sua casa, sem se sentir invadido. Tinha conseguido parar o tempo. Aquele tempo que nos dizima tinha sido reduzido a um simples grão de areia. Talvez estivesse junto a outros grãos, colados na ponta da cana do João, com a qual tinha feito os desenhos na areia molhada daquela praia. Resolvi olhar de perto os seus desenhos, na esperança de que a água não se tivesse encarregado de os apagar. Ao aproximar-me do local onde tinham sido feitos, reparei que já não existiam, ao mesmo tempo que senti o meu coração a bater tão forte que pensei ser um sonho. E o sonho era real. No momento em que terminasse a minha leitura, também terminaria o sonho, embora soubesse que não o podia evitar. Ao concluí-lo, senti de novo o cansaço de todos os dias, vi de novo as pessoas que não acreditam em raios de luz, mas fiquei feliz.....porque sei que hei-de voltar a sonhar. Agora, quando o quiser fazer, quando quiser respirar de um ar que me acalma, quando quiser aprender nas palavras dos outros o que por vezes teimo em esquecer, bastar-me-á abrir aquele livro....o que fez parar o tempo.

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